"-Quem é o pai e quem é a mãe? - perguntou Sócrates à Diotima.
-A história é um tanto longa - respondeu ela - contudo, vou contá-la. No dia em que Afrodite nasceu, os deuses davam um banquete. Achava-se entre eles o filho de Astúcia, que é Engenho. Acabado o banquete, chegou Penúria, para mendigar, visto que havia mesa farta, e parou à porta. Entretanto, Engenho, ébrio de néctar - o vinho ainda não existia - saiu para o jardim de Zeus e caiu num sono pesado. Penúria, eternamente em dificuldades, entendeu de ter um filho de Engenho; deitou-se com ele e concebeu o Amor. Eis uma das razões de se ter tornado o Amor companheiro e servo de Afrodite: ter sido concebido no nascimento dela; outra é ser Afrodite bela e ele, por natureza, um amante do belo. Filho, pois, de Engenho e Penúria, o Amor teve esta sina: primeiro, é um eterno mendigo, longe de ser um ente mimoso e bonito, como pensa a maioria; ao contrário, é aturado, poento, descalço, sem teto, sempre deitado no chão, sobre terra nua, dormindo ao relento nas soleiras e nos caminhos, porque herdou a natureza da mãe e passa a vida na indigência. Mas, puxando pelo pai, vive espreitando o que é belo e bom, porque é viril, acometedor, teso, um caçador exímio, sempre a urdir suas malhas, ávido de inventivas e talentoso, passando a vida a filosofar, um mago extraordinário, um feiticeiro, um sofista. Ademais, não nasceu imortal nem mortal, mas, no mesmo prisma, ora viça e vive, ora falece, para de novo surgir vivo quando entra a operar a natureza engenhosa que lhe vem do pai. Todavia, a renda de seus talentos sempre se lhe esvai, de sorte que o Amor nunca está na miséria e nunca na opulência. Eis a explicação: deus nenhum se entrega à filosofia, nem aspira a tornar-se sábio, porque já o é; nem se entrega à filosofia outro qualquer que seja sábio; por sua vez, os ignorantes não se ocupam de filosofia, nem aspiram a ser sábios; pois nisto mesmo consiste a desgraça do ignorante, em julgar, não sendo distinto nem inteligente, que o é quanto lhe basta; porquanto quem não se crê carecido não aspira àquilo que não imagina lhe falte.
-Então, Diotima - perguntou Sócrates, - quem se ocupa de filosofia, se não os sábios nem os ignorantes?
-Isso - respondeu ela - é claro até para uma criança: são os que se acham a meio caminho entre aqueles e estes, e no seu número pode ser contado o Amor. Com efeito, o saber está entre as coisas mais belas e o Amor é desejo do belo; portanto, forçosamente o Amor é um filósofo e, sendo filósofo, está situado entre o sábio e o ignorante. Ainda é sua origem a causa disso, pois é filho de um pai sábio e industrioso e de uma mãe ignorante e apalermada. A natureza desse espírito, meu caro Sócrates, é essa. Quanto ao que imaginavas fosse o Amor, nada de admirar no teu engano; cria, segundo depreendo de tuas palavras, que o Amor fosse o objeto amado e não o amante; daí penso, veres no Amor uma suprema beleza. Na realidade, o ente amável é que é belo, mimoso, perfeito e merecedor da felicidade; o amante, esse tem outra figura, a que te descrevi."
Cena de abertura de "Closer - Perto demais"
Música de Damien Rice: "The Blower's Daughter"
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